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Crônica: O peso e o prazer do retorno: contrastes na jornada à cidade que nasci

Atualizado: 2 de abr.

"A viagem de retorno é um misto de ansiedade e antecipação, como se cada quilômetro percorrido nos aproximasse não apenas de um lugar, mas de uma versão de nós mesmos há muito esquecida"


Crônica: O peso e o prazer do retorno: contrastes na jornada à cidade que nasci
Foto: Richard Günter

Voltar à cidade natal depois de anos é atravessar um portal no tempo, um passo para um mundo que habitou nossos sonhos e pesadelos, moldou nossas alegrias e tristezas, e definiu os contornos de nossa identidade. A viagem de retorno é um misto de ansiedade e antecipação, como se cada quilômetro percorrido nos aproximasse não apenas de um lugar, mas de uma versão de nós mesmos há muito esquecida.


Ao chegar, a primeira coisa que salta aos meus olhos é como as paisagens parecem ao mesmo tempo familiares e estranhas. As ruas onde aprendi a andar de bicicleta ou patins até o sol se pôr, o parque principal da cidade com seu monumento que servia de pano de fundo para algumas fotos, tudo parece ter encolhido, como se minhas lembranças tivessem sido ampliadas pela lente da nostalgia. As cores, os sons, os cheiros - cada um traz de volta uma torrente de memórias, algumas acolhedoras, outras dolorosas.


O cotidiano da cidade, que para mim hoje é pequena, com sua rotina previsível e seus rituais inalterados, contrasta fortemente com a vida que levo agora. Aquele caminho que fazia todos os dias para a escola, passando pela padaria cujo aroma de pão fresco ainda permeia o ar nas manhãs frias, parece agora um relicário de simplicidade e autenticidade em um mundo cada vez mais complexo e artificial.


Os amigos da infância, aqueles com quem compartilhei segredos, sonhos e desventuras, surgem de repente, não mais crianças, mas adultos moldados pelas vicissitudes da vida. O reencontro é um espelho do tempo, refletindo as mudanças em nossos rostos e almas. Conversamos sobre o passado como se fosse um livro cujas páginas todos conhecemos, mas cuja interpretação varia de acordo com quem lê. Algumas amizades resistem ao tempo, fortalecidas pela distância; outras se desfazem, deixando apenas um eco de familiaridade.


Os momentos que marcaram nossa vida naquela cidade formam um mosaico de emoções. As vitórias pequenas, as derrotas que então nos pareciam insuperáveis, os primeiros amores e desamores, cada um desses momentos contribuiu para a tapeçaria complexa da minha identidade. A tristeza que sentia em certos locais - seja pela perda de um ente querido, pelo fim de um amor juvenil, ou simplesmente pela melancolia de um domingo à tarde - ganha uma nova perspectiva, uma doçura melancólica que só o tempo é capaz de conferir.


Tudo em minha cidade natal parecia maior, mais intenso. Os verões eram mais quentes, as chuvas mais tempestuosas, os invernos mais rigorosos. As festas juninas iluminavam o céu com promessas de eternidade, enquanto as despedidas na rodoviária pareciam finais de novelas trágicas. Essa intensidade, com o tempo, foi dando lugar a uma serenidade, uma compreensão de que cada lugar, cada pessoa que cruzou meu caminho, teve seu papel em minha jornada.


Ao refletir sobre tudo que vivi ao retornar à cidade natal, sinto uma gratidão imensa transbordar em meu peito. Cada rua, cada casa, cada rosto traz consigo uma história, um pedaço de mim que eu havia esquecido ou talvez guardado a sete chaves na memória, com medo de encarar as emoções que trariam à tona. Mas, nesse mergulho nas águas profundas do passado, percebo o quanto cada experiência, cada encontro e cada desencontro me moldaram, me ensinaram, e, sobretudo, me fortaleceram.


A cidade natal, com suas paisagens que parecem pinturas desbotadas pela ação do tempo, seus sons que compõem a trilha sonora de muitas vidas, não apenas a minha, e seus cheiros que evocam uma sensação de pertencimento tão profunda, será sempre um capítulo essencial da minha história. Sou imensamente grato por cada momento de alegria compartilhada, por cada lágrima derramada em silêncio, por cada desafio que me fez crescer. Esses elementos formam a base sobre a qual construí minha vida, influenciando cada decisão, cada caminho que escolhi seguir.


Contudo, enquanto me deixo envolver por essa onda de nostalgia e reconhecimento, uma verdade se torna cada vez mais clara e inevitável: hoje, eu não me vejo mais presente nesse lugar. Não porque tenha perdido o amor ou o respeito por suas tradições e suas pessoas, mas porque entendo que minha jornada me levou por caminhos que se distanciam cada vez mais dessa origem. Minha alma, embora enraizada nas experiências da infância e juventude, anseia por novos horizontes, por experiências que expandem ainda mais minha compreensão do mundo e de mim mesmo.


Reencontrar a família após um longo período é um dos momentos mais emocionantes e significativos ao voltar à cidade natal. É como se, de repente, todos os quilômetros e anos de distância se dissolvessem no calor de um abraço, na familiaridade de um olhar, na cumplicidade de um sorriso. A casa, com seus cheiros e sons característicos, parece pulsar com histórias antigas e novas esperanças. Sentar-se à mesa para uma refeição em família é reviver rituais que nos definem, compartilhar notícias, redescobrir nuances nas vozes que tanto nos confortam.


Cada gesto, cada palavra, carrega o peso de uma saudade que só agora percebemos quão profunda era. É um reencontro com as raízes mais profundas do nosso ser, um lembrete palpável de onde viemos e do amor incondicional que, independente de onde estejamos, sempre nos chama para casa. No entanto, mesmo nesse círculo de amor e familiaridade, é possível sentir que algo mudou. Eu mesmo, no meio dessas paredes e dessas conversas, percebo que não me reconheço mais totalmente neste local; que, de certa forma, esse lugar não me pertence mais. Há uma sensação agridoce em admitir que, embora essas conexões familiares permaneçam inabaláveis, a minha essência e o meu lugar no mundo se transformaram, me conduzindo para além dos limites dessa cidade e dessa vida que um dia foi inteiramente minha.


Esse sentimento não diminui em nada o valor da cidade natal em minha vida; pelo contrário, fortalece o reconhecimento de sua importância no que me tornei. Mas reconhecer que meu lugar não é mais ali é também um ato de gratidão, é reconhecer que o crescimento muitas vezes nos conduz para longe fisicamente, mesmo que emocional e espiritualmente permanecemos conectados.


Assim, enquanto me preparo para partir novamente, carrego comigo a serenidade de quem sabe que, embora nossos caminhos possam nos levar para longe, as raízes e as asas que recebemos da nossa cidade natal são o verdadeiro lar que carregamos dentro de nós. E é com esse sentimento de gratidão e de paz que olho para trás, agradecendo por tudo que vivi, enquanto me volto para o futuro, ansioso pelas novas histórias que vou viver e escrever.

 

■ Por Richard Günter

Jornalista, pós-graduado em roteiro audiovisual e graduando de cinema

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